Bugio é caracterizado pela imitação do som do macaco na gaita e de seus movimentos na dança.
Foto: André Ávila / Agência RBS |
O reconhecimento será oficializado nesta terça-feira (12) pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) em cerimônia que contará com a participação de personalidades ligadas ao tradicionalismo e representantes dos municípios de São Francisco de Assis e São Francisco de Paula, que estão intimamente ligados à origem do gênero.
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Há uma disputa histórica entre as duas cidades sobre qual delas seria o verdadeiro "berço" do bugio. Ambas promovem festivais exclusivamente dedicados ao gênero (Querência do Bugio, em São Francisco de Assis, e Ronco do Bugio, em São Francisco de Paula) e reivindicam os méritos pela sua criação.
— Somos bem bairristas nesse quesito (risos) — confessa Prescilla Saquett, secretária de Educação e Cultura de São Francisco de Assis. — Se chegar aqui na cidade e falar sobre a origem do bugio, as pessoas se envolvem, porque temos um sentimento de pertencimento com esse gênero.
Rafael Castillo, secretário de Turismo de São Francisco de Paula, contrapõe:
— Para nós, o bugio nasceu em São Francisco de Paula. Está na essência da população do nosso município. Essa identificação é muito forte, algo que mexe com a cultura, a tradição e a estima da gente.
Apesar das diferenças, os municípios estenderam bandeira branca a fim de viabilizar o reconhecimento do bugio como patrimônio cultural imaterial do Estado. São Francisco de Assis e São Francisco de Paula colaboraram ativamente no processo de pesquisa e defesa do gênero junto ao Iphae — inclusive, planejaram conjuntamente um número musical inédito, com composição assinada por músicos das duas cidades, que será apresentado na cerimônia desta terça.
Imitação do macaco
Mas, afinal, qual é a origem do bugio? A unanimidade é que o gênero foi inspirado no som característico emitido pelo macaco bugio, presente em diferentes regiões do território gaúcho. A sonoridade produzida com a gaita, que depois se tornou a marca registrada do bugio como música, teria surgido pelas mãos de gaiteiros que, em tom de brincadeira, tentavam imitar, com o instrumento, o ronco produzido pelo animal.
Conforme o músico, luthier e pesquisador Israel da Sóis Sgarbi, autor do livro O Ritmo Musical do Bugiu (propositalmente escrito com "u", para diferenciar do animal), os primeiros indícios destas imitações datam do século 19. Assim, o bugio surge como uma manifestação folclórica do Rio Grande do Sul, sendo tocado em festas da cultura popular e celebrações informais, para somente depois ganhar os salões de baile.
— Era uma melodia muito mais simples, tocada em gaitinhas de botão. Tanto na música quanto na dança, tudo gira em torno do animal. A gaita imita o ronco do macaco, e a dança remete ao modo como ele caminha — explica.
Sgarbi cita que, devido à sua origem popular, o gênero chegou a ser proibido nos bailes da elite gaúcha, que o via como uma expressão cultural "menor". Contudo, o ritmo animado e o caráter lúdico do bugio não tardaram a contagiar a população do Estado.
"Filho" do Rio Grande
O gênero se espalhou rapidamente pelo Rio Grande do Sul, de modo que, segundo o pesquisador, é impossível afirmar o local exato em que um bugio foi tocado e dançado pela primeira vez.
— São Francisco de Paula e São Francisco de Assis têm as histórias mais convincentes sobre essa origem, mas a verdade é que o bugio é um filho do Rio Grande. Se precisasse cravar onde exatamente ele nasceu, eu só poderia dizer que foi no fole de uma gaita — diz Sgarbi, brincando que, como morador de São Francisco de Paula, prefere sempre a versão que associa o nascimento do bugio à sua terra natal.
Gaiteiro e assessor cultural do município de São Francisco de Assis, Regis Lançanova compartilha o entendimento de que o bugio pertence a todo o povo gaúcho. Porém, defende que os primeiros acordes do gênero saíram da gaita de Wenceslau da Silva Gomes, o Neneca Gomes, gaiteiro que animava os bailes da cidade no início do século 20.
— As pesquisas históricas do nosso município contam que Neneca Gomes deitava embaixo das árvores para ouvir os bichos roncarem, enquanto tentava imitar esse som na mão esquerda da gaita. Isso é o que a gente acredita ser a origem do bugio, que depois se espalhou pelo Estado, foi gravado pelos Irmãos Bertussi e contagiou a todos — detalha Regis.
Dos Irmãos Bertussi aos bailes da gurizada
De fato, o primeiro registro fonográfico de um bugio foi feito por Adelar e Honeyde Bertussi, da dupla Irmãos Bertussi. Trata-se da canção O Casamento da Doralícia, considerada o clássico máximo do gênero, gravada pela primeira vez em 1955.
O acordeonista Gilney Bertussi, filho de Adelar, lembra que o pai e o tio contavam sobre antigos tocadores de gaita-ponto dos Campos de Cima da Serra que copiavam o ronco do bugio no instrumento. Foi a partir dessas inspirações que os dois compuseram O Casamento da Doralícia, que acabou se tornando responsável por difundir o bugio.
— A minha família é imensamente orgulhosa por nossos antepassados terem sido os primeiros a trabalhar com esse ritmo — diz Gilney.
O músico dá continuidade ao legado dos Bertussi como um divulgador do bugio. Ao lado do também acordeonista Rafael De Boni, Gilney é responsável pelo projeto Nossa Música Entre Causos e Gaitas, que promove o encontro das novas gerações com o gênero musical.
A gente vai até as escolas para palestras musicadas a respeito da nossa música. É um projeto sensacional, que contribui para que o bugio fique cada vez mais consolidado.
GILNEY BERTUSSI
Acordeonista e filho de Adelar, da dupla Irmãos Bertussi
Sucesso com crianças e jovens
A comicidade do bugio, com letras que geralmente referenciam o animal ou narram causos com desfechos engraçados, faz sucesso entre as crianças que participam do projeto.
Esse aspecto lúdico também conquista a juventude inserida no tradicionalismo, conforme observa Wagner Gaspar, instrutor da invernada juvenil do 35 CTG. Sempre que um bugio toca no baile, a gurizada corre para o meio do salão.
— O bugio não é tão dançado quanto uma vaneira ou um chote, ritmos que acabam sendo mais populares porque têm um repertório maior de músicas. Mas quando chega a hora do bugio dentro de um baile, é muita diversão e brincadeira. A gurizada gosta de brincar e se desafiar, porque é uma dança que cansa e tem essa característica de descontração — comenta.
Como se dança o bugio
Se no âmbito musical a principal característica do bugio está na imitação do som do macaco, na dança o diferencial vem pela representação do modo como ele se movimenta.
Egon Junges, diretor de Danças Gaúchas de Salão do MTG, relata ser comum que, de maneira informal, nos bailes e fandangos, o bugio seja dançado como se fosse vaneira. As duas danças são semelhantes por terem compassos binários — são dançadas com dois passos para cada lado —, mas a diferença é que, no bugio, existem marcações alusivas aos trejeitos do animal.
Para isso, o casal de dançarinos faz movimentações de tronco que remetem à curvatura característica do bugio, além de dar "pulinhos" que lembram o caminhar do animal.
— O bugio é uma dança que exige resistência e flexibilidade, por isso muita gente adapta para a forma como consegue dançá-la. Porém, nos concursos de danças gaúchas de salão, todas essas particularidades são avaliadas, porque são elas que caracterizam o bugio — diz Junges.
Para o representante do MTG, os diversos concursos organizados pela entidade são cruciais para a preservação do gênero, pois garantem a sobrevivência da forma tradicional de se dançar e se tocar o bugio. Junges também vê no reconhecimento do ritmo como patrimônio cultural imaterial do Estado uma frente importante de valorização.
(O reconhecimento como patrimônio imaterial) É um caminho para que consigamos difundir o bugio como um ritmo autenticamente gaúcho e brasileiro.
EGON JUNGES
Diretor de Danças Gaúchas de Salão do MTG
Em busca do reconhecimento além do RS
A expectativa é de que a patrimonialização do bugio também possa popularizar o gênero para além do universo tradicionalista e trazer efeitos práticos para as cidades envolvidas em sua história.
O secretário de Turismo de São Francisco de Paula, Rafael Castillo, diz que o município já explora sua ligação com o gênero como um atrativo turístico e que isso deve se intensificar ainda mais.
— O fato de termos o bugio elevado a patrimônio cultural imaterial do Rio Grande do Sul chama atenção para São Francisco de Paula, reforçando o nosso festival Ronco do Bugio e a história dos nossos gaiteiros. A gente quer seguir atraindo cada vez mais visitantes por elementos como esses, que refletem a nossa essência — afirma.
Em São Francisco de Assis, conforme a secretária de Educação e Cultura, Prescilla Saquett, o plano é seguir investindo no festival Querência do Bugio como atrativo turístico da cidade. Além disso, o município trabalha a história do gênero na rede pública de ensino e promove a valorização de artistas locais ligados a ele.
— Queremos continuar elevando cada vez mais a cultura do bugio, que agora passa de São Francisco de Assis ou de São Francisco de Paula. É um bem cultural de todos nós, que precisa ser cada vez mais difundido — diz Prescilla.
Para o pesquisador Israel da Sóis Sgarbi, o reconhecimento junto ao Iphae abre caminho para que, no futuro, o bugio seja declarado patrimônio cultural imaterial do país e, quem sabe, da humanidade — como já aconteceu com o argentino chamamé.
— Se eles conseguiram, eu acho que a gente também pode chegar lá — projeta Sgarbi. — Ser gaúcho não está em só calçar uma bota ou vestir uma bombacha: está em valorizar as coisas da nossa terra. E o bugio é o que de mais nosso poderíamos ter — finaliza. FONTE: GZH
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